Apagão atinge todas as regiões do Brasil

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Marcelo Henrique de Carvalho

Na madrugada de 14 de outubro de 2025, um apagão interrompeu a energia elétrica de cerca de 1 milhão de pessoas no estado de São Paulo, num episódio que, embora breve em duração, revelou a vulnerabilidade estrutural de um dos sistemas mais complexos e vitais da sociedade contemporânea: o sistema elétrico nacional. O incidente, que também afetou estados vizinhos do Sudeste, foi causado por um incêndio em um dos equipamentos de alta tensão da subestação de Bateias, localizada na região metropolitana de Curitiba, no Paraná. A falha ocorreu às 0h32, levando à desconexão de uma das principais linhas de transmissão entre as regiões Sul e Sudeste/Centro-Oeste do país, e exigindo a atuação automática do Esquema Regional de Alívio de Carga (ERAC), um protocolo de proteção que desliga temporariamente parte do sistema para evitar o colapso em cadeia da rede interligada. Contudo, para além da explicação técnica, o episódio expõe dilemas contemporâneos sobre a interdependência tecnológica, a gestão do risco sistêmico e os limites da segurança energética em um mundo hiperconectado.

O apagão de outubro de 2025 deve ser compreendido dentro da lógica de uma infraestrutura que, embora avançada, é também profundamente sensível a perturbações localizadas. Ao mesmo tempo em que o Sistema Interligado Nacional representa uma conquista da engenharia e da política energética brasileira — integrando termelétricas, hidrelétricas e fontes renováveis em um mosaico continental —, ele também traduz uma vulnerabilidade essencial: a interdependência entre suas partes. O incêndio em uma subestação no interior do Paraná, evento aparentemente restrito, propagou-se como um descompasso instantâneo entre as interconexões regionais, afetando simultaneamente consumidores em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e parte do Centro-Oeste. Em São Paulo, a Enel relatou o desligamento temporário de 937 mil clientes, com interrupção média de oito minutos. Embora o fornecimento tenha sido restabelecido com rapidez, a escala simbólica e prática do evento foi imensa: às escuras, ainda que por poucos minutos, a maior metrópole do hemisfério sul experimentou, mais uma vez, a potência e a fragilidade de sua infraestrutura crítica.

O fenômeno coloca em evidência a complexidade de um sistema elétrico que opera no limiar entre estabilidade e risco permanente. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) informou que o incêndio interrompeu a transferência de aproximadamente 10 gigawatts de carga — energia suficiente para abastecer uma cidade de dezenas de milhões de habitantes. Técnicos identificaram a falha em um reator da subestação e acionaram, em seguida, o esquema de proteção automática que reduziu cargas em diferentes regiões, evitando um apagão de dimensão catastrófica. Trata-se de um reflexo da inteligência preventiva embutida no sistema, cuja arquitetura depende de algoritmos, sensores e dispositivos que decidem, em frações de segundo, quais circuitos devem ser desligados para preservar a integridade do todo. Paradoxalmente, é justamente esse mecanismo protetivo que, ao cortar a energia de forma emergencial, desencadeia o efeito imediato percebido pela população.

Do ponto de vista social, o episódio evidencia a profunda dependência da vida moderna em relação ao fornecimento contínuo de energia. O breve intervalo de escuridão, de oito minutos, foi suficiente para paralisar semáforos, interromper sistemas de monitoramento urbano, afetar hospitais e provocar apreensão generalizada entre as populações das grandes cidades. O silêncio repentino das máquinas e o breu das avenidas, ainda que por instantes, produziram um sentimento coletivo de suspensão, um vislumbre daquilo que a sociedade costuma considerar impensável. O apagão, nesse sentido, ultrapassa a mera falha técnica e adquire dimensão simbólica: representa o colapso momentâneo de um contrato tecnológico que define as relações de confiança entre o indivíduo e o Estado moderno, entre a casa e a cidade, entre o humano e o sistema.

A análise acadêmica do evento poderia situá-lo no contexto das “infraestruturas críticas”, conceito caro à sociologia da tecnologia e à filosofia política. Essas infraestruturas são aquelas sem as quais a vida social organizada se torna inviável: energia, água, transporte, comunicações, internet. Elas constituem o substrato invisível da vida contemporânea, sustentando a normalidade cotidiana com tamanha eficácia que sua ausência se torna quase impensável. Quando falham, não revelam apenas fragilidades logísticas, mas fissuras na própria lógica civilizatória que as instituiu. O apagão de outubro, portanto, não é apenas um incidente técnico, mas um acontecimento filosófico: ele reinstaura a consciência da dependência estrutural do homem em relação a sistemas que ele próprio construiu, mas que muitas vezes não compreende nem controla plenamente.

Esse tipo de perturbação tem um efeito paradoxal. De um lado, reforça a necessidade de aperfeiçoar mecanismos de redundância, automação e inteligência de rede. De outro, suscita uma reflexão crítica sobre o mito da infalibilidade tecnológica. A cultura moderna tende a imaginar a infraestrutura como uma entidade neutra, plenamente funcional, quase naturalizada na paisagem urbana. Quando o sistema falha — e falha inevitavelmente, porque é uma construção humana — o evento rompe a ilusão de continuidade e expõe o quanto o cotidiano depende de processos que operam fora do campo de percepção da maioria. Assim, uma subestação em um município distante de Curitiba torna-se, por alguns minutos, o epicentro do cotidiano de milhões de pessoas em São Paulo. O tempo e o espaço se decompõem em redes energéticas, demostrando como a globalização técnica reconfigura as dimensões tradicionais do lugar e da soberania.

No campo econômico, o episódio reacende debates sobre a resiliência do sistema energético brasileiro diante de uma matriz em transformação. O país, tradicionalmente dependente de fontes hidrelétricas, avança em direção à diversificação com eólicas e fotovoltaicas, mas enfrenta o desafio de equilibrar geração centralizada e distribuída. A integração dessas novas fontes, embora positiva do ponto de vista ambiental, aumenta a complexidade da rede e requer sistemas de controle mais sofisticados. Neste contexto, cada falha — ainda que localizada — serve como teste empírico da capacidade regulatória e tecnológica do Estado e das concessionárias. O apagão evidencia a urgência em investir não apenas em geração, mas também em estabilidade e monitoramento, num momento em que o consumo urbano cresce em velocidade superior à capacidade de adaptação estrutural do sistema.

Há, ainda, uma dimensão política e administrativa fundamental. O Ministério de Minas e Energia, em conjunto com o ONS e as concessionárias, anunciou a abertura de uma investigação técnica e a elaboração de um Relatório de Análise de Perturbação (RAP), documento que identificará as causas e os protocolos a serem aprimorados. No entanto, esse tipo de resposta, embora necessária, raramente é suficiente para restaurar a confiança pública. Em sociedades hiperconectadas, a credibilidade das instituições depende tanto da competência técnica quanto da habilidade comunicativa. A percepção de que um incêndio isolado possa interromper o fornecimento em áreas densamente habitadas desafia a narrativa de modernização e de segurança energética cultivada ao longo das últimas décadas.

A partir de uma leitura mais ampla, o apagão pode ser interpretado também como metáfora das contradições do urbanismo contemporâneo. As megacidades, como São Paulo, tornaram-se organismos dependentes de fluxos contínuos de energia, dados e transporte. Essa dependência cria uma condição de vulnerabilidade permanente, em que cada falha técnica ressoa como um abalo ontológico: o medo do colapso da ordem material. O urbanista francês Paul Virilio já argumentava que todo novo sistema técnico traz consigo sua própria forma de acidente — a invenção da locomotiva, dizia ele, é também a invenção do descarrilamento. De modo análogo, o sistema interligado de energia carrega em si a possibilidade do apagão: o risco não é um desvio, mas uma característica estruturante de sua existência.

O evento de outubro expõe ainda tensões entre o desenvolvimento tecnológico acelerado e a gestão pública eficiente. O Brasil, nas últimas décadas, elevou seu padrão de cobertura elétrica a quase universalidade, mas isso ocorreu em meio a defasagens de investimento em manutenção e modernização de equipamentos. Subestações antigas, linhas sobrecarregadas e sistemas de monitoramento defasados tornam o sistema suscetível a eventos imprevisíveis — incêndios, sobrecargas, falhas automáticas — que podem se propagar rapidamente. Assim, a discussão sobre o apagão não pode se restringir à investigação pontual de suas causas, mas deve abrir espaço para uma abordagem sistêmica sobre governança, previsibilidade e cultura de prevenção tecnológica.

Um aspecto interessante da reflexão sobre o apagão diz respeito à temporalidade do acontecimento. A interrupção durou, em São Paulo, apenas oito minutos. No entanto, seu impacto ultrapassa o campo da duração. O evento é instantâneo, mas o trauma social que ele revela é prolongado. A percepção pública é moldada menos pela extensão da falha do que pelo que ela simboliza: o colapso momentâneo da crença na continuidade. A sociedade moderna estrutura-se sobre a ideia de fluxo ininterrupto — de energia, de informação, de capital — e qualquer suspensão, por mínima que seja, torna-se uma forma de crise. Ao amanhecer daquele 14 de outubro, quando a energia já estava restabelecida, milhões de brasileiros voltavam à normalidade sem perceber que, por alguns minutos, haviam testemunhado a delicada fronteira entre a estabilidade e o caos.

Em última instância, o apagão de São Paulo e do Sudeste na madrugada de 14 de outubro de 2025 é um acontecimento técnico que transborda para o campo filosófico, político e existencial. Ele revela a interdependência radical que define as sociedades contemporâneas e questiona as promessas de controle absoluto sobre infraestruturas complexas. A noite em que parte do país ficou às escuras foi, paradoxalmente, um instante de iluminação: um convite a repensar a condição humana diante das máquinas que a sustentam, os sistemas que a conectam e os riscos que ela produz. Num mundo amparado por redes invisíveis de energia e informação, talvez o maior desafio não seja evitar o apagão, mas aprender a compreender o que ele nos diz sobre nós mesmos.

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